Sociologia da tradução de Macunaíma

Em vida, Mário de Andrade acompanhou as primeiras intenções tradutórias para o inglês e espanhol, cujos textos permaneceram inéditos. O autor estabeleceu um diálogo epistolar com os tradutores da rapsódia, no qual sugeria, criticava e comentava as propostas da apresentação de Macunaíma na língua estrangeira. Na Edição Crítica da obra, Telê Ancona (1978) reuniu algumas notas de Mário de Andrade para a primeira tradução de Macunaíma, as quais estão disponíveis no acervo do escritor e composta por “seis laudas de papel-jornal, manuscritas a lápis, frente e verso [...] Seguindo a ordem dos capítulos e das páginas da primeira edição, formam um pequeno glossário de termos brasileiros, além de tentar esclarecer enumerações, rimas e metáforas” (LOPEZ, 1978, p. 310)

Primeiras traduções de Macunaíma

Por Margareth Richardson

Por Carybé (Héctor Bernabó) e Raul Brié

Em carta a Manuel Bandeira, datada de 12 de dezembro de 1930, Mário de Andrade comenta que, considerando sua apreciação sobre as traduções realizadas por Margaret Richardson, duvidava da possibilidade dela conseguir garantir a essência do personagem e narrativa de Macunaíma em inglês. Diante disso, ele destaca que sinalizou em notas a tradutora, com grifos azuis os provérbios, costumes nacionais e locuções, os quais compõem um conjunto de elementos peculiares do livro que na sua opinião deveria ser mantido tal qual no texto de partida.

Na lista de notas a Margaret Richardson, Mário de Andrade aponta o seguinte esclarecimento sobre o termo utilizado em português no capítulo 2 “Maioridade”: ​

"Enumeração de objetos usados numa casa indígena. Não é preciso traduzir, mas transportar. Todas as enumerações do livro são imitações do popular e criadas unicamente com intenção poética, de criar belas frases, de sonoridades curiosas, novas e mesmo cômicas às vezes. Traduzi-las seria inútil e mesmo impossível. O milhor é criar enumerações novas, tirando efeitos idênticos dentro da índole da língua americana. Só nas enumerações de nomes de pássaros, peixes, insetos (como a que vem na 3ª linha desta página, assinalada a lápis vermelho) se deverá conservar as palavras, pois mesmo pronunciadas à inglesa, a enumeração produz o efeito pretendido. (24-7)". (LOPEZ, 1978, p. 312)

Em 1933, novamente em diálogo epistolar com Manuel Bandeira, Mário de Andrade sinaliza sua apreciação favorável à tradução de Macunaíma por Margaret Richardson. A mudança de opinião resultou de seu contentamento com a produção de sua obra Amar, verbo intransitivo em inglês efetivada pela escritora, que assim como no caso da rapsódia, procedeu de constantes debates estabelecidos previamente entre eles. Esse registro, segundo Telê Ancona, está conservado no seu arquivo a partir da amostra da tradução do capítulo 6 “A francesa e o gigante”. A referida tradução permanece inédita até os dias de hoje.

Entre 1944 e 1945, foi proposta a segunda tradução de Macunaíma, neste caso para a língua espanhola. A atividade foi realizada pelo artista argentino, radicalizado no Brasil, Hector Bernabó (famoso pelo nome Carybé), em parceria com seu amigo Raul Brié. A Mário de Andrade foram enviados, por Newton Freitas, os originais da tradução de Macunaíma e as ilustrações da rapsódia feitas por Carybé. A caminho da Argentina para o Brasil, a referida documentação foi apreendida no Rio de Janeiro sob a censura do Estado Novo. No entanto, após pedidos de recorrência dos arquivos, chegaram às mãos de Mário de Andrade em 08 de junho de 1944.

Em carta endereçada a Newton Freitas em 09 de outubro do referido ano, Mário de Andrade sinaliza seu agrado pelos desenhos de Carybé e sua aprovação à tradução de Macunaíma ao espanhol com algumas ressalvas:

"[...] Por favor diga isto ao Carybé [...] que aprovo inteiramente os desenhos. E a tradução também, aqui sempre enquanto eu conheço pouco o castelhano. Só me pareceu garantidamente sem resultado, a carta pras icamiabas escrita em português pernóstico, pretensioso e frequentemente errado, e cuja transposição não pude pegar bem e me pareceu ineficaz. Mas falarei detalhadamente, e enviarei, como estou fazendo, explicações e consertos, detalhados, linha por linha, isto é, indicando até página e linha para facilitar as modificações fáceis e pouco numerosas a fazer [...]" (Andrade, 2017, p. 218)

Decidido o encaminhamento para a tradução de Macunaíma em espanhol, Mário de Andrade, em 15 de fevereiro de 1945, pergunta a Newton Freitas por qual meio era possível enviar suas pontuações sobre a tradução de Carybé, sem que pudesse incorrer no desvio de seu destino final. Entretanto, exatos 10 dias após o envio da carta, Mário veio a óbito devido a um infarto que o acometeu aos seus 51 anos de idade.
Com isso, segundo informações cedidas em entrevista com Gabriel Bernabó, a tradução retorna a Carybé e o artista procura em Buenos Aires, Argentina, um editor para a obra em espanhol, porém não encontra interessados. Como era entusiasta da rapsódia, desejava ferrenhamente que sua produção fosse publicada, por isso passou anos na tentativa, no entanto não conseguiu realizar o seu desejo. Dessa maneira, seu projeto foi interrompido e até o momento não se tem informações sobre o paradeiro da referida tradução.

Traduções inéditas: sob o olhar da pesquisadora

Por Aline de Freitas Santos

Embora tenham seguido inéditas as traduções de Macunaíma realizadas por Margaret Richardson, ao inglês, e por Hector Bernabó (Carybé), ao espanhol, é salutar considerarmos seus respectivos contextos de produção, pois nos convidam a refletir acerca de duas questões centrais para compreender o marco inicial do processo tradutório de Macunaíma, sob o ponto de vista sociológico.

A primeira refere-se à interferência de agentes externos representados nestes casos pelo próprio escritor do texto de partida. As sinalizações de Mário de Andrade sobre o que devia ser mantido, retirado ou modificado nas traduções propostas se configuram como uma espécie de norma que restringe e indica certo controle sobre o processo e as tomadas de decisões dos tradutores. Além disso, é evidente que os propósitos políticos delineados pelo autor da obra, nesse feedback, manipulam a função da tradução e ainda inviabilizam (parcial ou integralmente) a postura do tradutor. Este ponto inclusive incita a uma reflexão, ainda sob a ótica da sociologia da tradução, acerca do problema correspondente à falta de consideração do tradutor como profissional o que, conforme aponta Sapiro (2014), confere-lhe uma posição marginal e sujeita a invisibilidade. Os estudos em defesa à visibilidade e autonomia do tradutor têm se fortalecido ao longo dos anos. E mesmo considerando que na década de 30 e 40 (período correspondentes às primeiras

traduções de Macunaíma) a tradição das teorias tradicionalistas fossem imperativas, é importante sublinhar esse fato, já que a invisibilidade aventada na intervenção de Mário de Andrade sugere tal apagamento. Ademais, diante do fato de o agenciamento de controle estabelecido no processo tradutório advir do próprio autor do texto fonte, a tentativa de aproximar a tradução a seus elementos revela condicionantes políticos-ideológicos que pretendem priorizar a essência do cânone. Além disso, é evidente que os propósitos políticos delineados pelo autor da obra, nesse feedback, manipulam a função da tradução e ainda inviabilizam (parcial ou integralmente) a postura do tradutor. Este ponto inclusive incita a uma reflexão, ainda sob a ótica da sociologia da tradução, acerca do problema correspondente à falta de consideração do tradutor como profissional o que, conforme aponta Sapiro (2014), confere-lhe uma posição marginal e sujeita a invisibilidade.

Outra leitura que levantamos a respeito das interferências e resistência de Mário de Andrade frente às possibilidades de tradução de Macunaíma para as línguas estrangeiras justifica sua atitude, diante os riscos que o processo tradutório poderia oferecer ao seu projeto nacional delineado na rapsódia. Entendendo a tradução como veículo potencializador de difusão da literatura no exterior e, logo, vulnerável aos critérios exigidos pelo mercado literário internacional, é salutar atenta-se especialmente às características do componente linguístico para qual se traduz, pois, conforme aponta Casanova (2002),

[...] Todos os ‘escribas literários’ de línguas "pequenas" confrontam se, portanto, de uma maneira ou de outra, com a questão, de certa forma inevitável, da tradução. Escritores ‘traduzidos’ estão presos em uma contradição estrutural dramática que os obriga a escolher entre a tradução para uma língua literária que os separa de seu público nacional, mas proporciona-lhes existência literária, e a retirada para uma língua ‘pequena’, que os condena à invisibilidade ou a uma existência literária inteiramente reduzida à vida literária nacional [...] (p. 312, grifo nosso)


Embora Mário de Andrade não tenha presumido a possibilidade de reconhecimento de Macunaíma nesse cenário literário, diante de seu posicionamento firme perante às propostas dos tradutores, provável que entre garantir a existência da rapsódia em solo internacional com prejuízos ao seu projeto nacional, ou manter sua obra restrita ao Brasil cumprindo com os seus propósitos políticos, ideológicos e culturais, possivelmente a sua escolha corresponderia a segunda opção. Em retomada às questões que demarcam o processo tradutório de Macunaíma, sinalizamos como segundo ponto central à previsão quanto ao resultado da tradução, identificada a partir das ponderações de Mário de Andrade em cartas, e pelo grau de colocações e intervenções que ele sugere às respectivas propostas tradutórias. Na comparação da recepção do autor modernista frente às produções de Richardson e Carybé, observa-se que no primeiro caso, a tradução para o inglês lhe causa maior resistência do que ao espanhol. Fato este apontado em sua apreciação supracitada nas cartas a Manuel Bandeira.

A admirável postura de Mário de Andrade frente às questões sociais revelava a consciência política que poucos intelectuais da época possuíam. Enquanto homem preto, imerso num ambiente em que a intelectualidade era predominantemente representada por pessoas brancas, Mário de Andrade vítima do racismo em sua época, escreveu muitos textos que tratavam da questão racial, os quais foram censurados na comemoração do cinquentenário da abolição no ano de 1938 e que somente vieram à tona postumamente. Os fatores ideológicos que ecoavam sobre o seu modo de ser e estar no mundo e sua postura política frente aos problemas sócio-históricos consequentemente conduziam Mário de Andrade em seus propósitos e projetos. Desse modo, a sua resistência e interferência direta na proposta de Macunaíma para o inglês norte-americano, colocadas a priori, apontam as complexidades que constituem o processo dessa tradução e integram a sua sociologia.

Embora Mário de Andrade não tenha presumido a possibilidade de reconhecimento de Macunaíma nesse cenário literário, diante de seu posicionamento firme perante às propostas dos tradutores, provável que entre garantir a existência da rapsódia em solo internacional com prejuízos ao seu projeto nacional, ou manter sua obra restrita ao Brasil cumprindo com os seus propósitos políticos, ideológicos e culturais, possivelmente a sua escolha corresponderia a segunda opção. Em retomada às questões que demarcam o processo tradutório de Macunaíma, sinalizamos como segundo ponto central à previsão quanto ao resultado da tradução, identificada a partir das ponderações de Mário de Andrade em cartas, e pelo grau de colocações e intervenções que ele sugere às respectivas propostas tradutórias. Na comparação da recepção do autor modernista frente às produções de Richardson e Carybé, observa-se que no primeiro caso, a tradução para o inglês lhe causa maior resistência do que ao espanhol. Fato este apontado em sua apreciação supracitada nas cartas a Manuel Bandeira.

É importante sublinhar também acerca do intenso diálogo que Mário de Andrade possuía com a cultura argentina e a proximidade do escritor com intelectuais do país. Segundo Patrícia Artundo, organizadora das Correspondências de Mário de Andrade e escritores/artistas argentinos, a presença do universo cultural da Argentina no acervo do autor de Macunaíma tem valor inestimável, tanto do ponto de vista material, quanto do significado que delineia a sua relação com os oriundos da referida nação (ANDRADE, 2013). Fator que corrobora e, quiçá, justifica a característica menos interventiva de sua recepção sobre a tradução de Carybé.